sábado, 3 de março de 2012

Viver é uma arte



Por Gilka Oliveira


O encontro estava marcado para o final da tarde. No pátio da universidade, observo-o na orientação da monografia de uma das alunas do curso de Pedagogia. A calma sempre evidenciada por um tom de voz constante e uma atenção sincera e cordial, dispensada a quem o solicita, contrastam com a falta de tempo que envolve a maioria das pessoas nos dias atuais e não faz dele uma exceção.
Filho do comerciante  Francisco  Benevides de Alencar e da dona de casa Júlia Carlos de Alencar, é o penúltimo dos cinco filhos do casal. Passou a infância em sua cidade natal, Juazeiro do Norte, visitando regularmente a tia Vicencia, que morava no Crato e a quem considera uma de suas quatro mães, além da biológica, da ama de leite e da tia Maria Carlos, carinhosamente chamada de mãe-titia, que o levava quando pequeno às festas religiosas de sua cidade natal.
Com exceção do primogênito que tinha o mesmo nome do pai, todos os irmãos tem os pré-nomes iniciados com a letra R, no entanto por ter nascido com o pescoço envolto no cordão umbilical,  em função de uma promessa feita pela mãe a São José, foi registrado como José Rener.
Jose Rener Benevides de Alencar,  recorda-se entre outras coisas de sua infância, da primeira professora, Maria Santa, em uma época na qual a palmatória ainda era utilizada, sua mãe todavia não acreditava que os castigos físicos fossem o melhor recurso, recomendando a professora que aquilo não era necessário, talvez disso derive boa parte do seu entendimento sobre educação.
Na escola improvisada as crianças traziam as cadeiras de suas casas, para serem alfabetizadas, o que possibilitou mais tarde a construção de poesias, sua primeira manifestação através da arte.
No início da adolescência, por volta dos 11 anos muda-se com a família para Petrolina, onde reside até  hoje. Aos 15 anos começa a fazer teatro e passa a conhecer a religião Hare Krishna da qual fez parte dos 15 aos 19 anos, juntamente com integrantes do seu grupo teatral que viajavam a Feira de Santana para visitar o templo.
No ensino médio, devido ao contato com a natureza, optou pelo curso de agrotecnia, surgindo durante essa época, o teatro, através de sua participação no Grupo de Teatro Autran, de Petrolina, responsável pela 1ª  visita do ator Paulo Autran ao nordeste, na referida cidade. Com o grupo, Rener, se apresentou em cidades como Salgueiro, Feira de Santana e Salvador, não havendo uma motivação financeira, o fazia por idealismo e prazer.
A convite de amigos aceitou participar na decoração de carnaval de dois grandes clubes de Juazeiro, considerando essa sua primeira grande experiência com artes plásticas e o que o motivou a pintar em seu quarto um desenho de Gal Costa; elogiado por seu amigo Paulo Brito, que o incentivou a optar pelo curso de Belas Artes.
Chegou a Salvador em 1980 para cursar Belas Artes na UFBA, mesmo a contragosto de um de seus tios, que julgava não ser aquele o melhor caminho para ele, contou com o apoio do pai, que o ajudava financeiramente dentro do possível, mesmo auxiliado pelo crédito educativo concedido pela universidade, sua renda era insuficientes para manter-se, obrigando-o a trabalhar enquanto estudava.
Trabalhou juntamente com sua amiga Judite, como garçon no Bar Sarau, no bairro do Rio Vermelho, freqüentado por muitos artistas.  Nesse período desenvolveu alguns trabalhos como colares em cerâmica, fotografias e restaurações em locais históricos como o Palácio Rio Branco, a convite de seu professor de restauração, José Dirson Argolo, durante o período em que  a prefeitura estava deixando o Palácio para se instalar no prédio atual.
Juntamente com o caricaturista argentino Eduardo Britz, pintou um painel da Santa Ceia, na Paróquia do Auto de São Francisco na Boca do Rio,  o qual causou muitos comentários devido às cores fortes utilizadas e pela representação dos rostos com fisionomias de pessoas conhecidas da paróquia, como o padre e os próprios artistas,  sendo ele representado como São João. O dinheiro desse trabalho, possibilitou-o viajar para a Argentina, num momento em que vários artistas estavam retornando do exílio e realizando vários shows gratuitos como forma de celebrar o fim da ditadura militar, que ainda se mantinha no Brasil, o que possibilitou um contato mais amplo com a cultura e artistas locais.
Em Salvador teve vários endereços, como a residência universitária. Nos vários momentos em que a faculdade esteve em greve,  participou dos movimentos estudantis por melhorias, entre eles, na época em que o então reitor, Rogério Vargens, foi trancado no banheiro da universidade, como forma de protesto, em uma ocupação da UFBA da qual participaram Lídice da Mata e Ravier Alfaia, ex-presidente da UNE, chegando a contar com a intervenção do exército e da polícia na ocasião.
Embora acreditasse que seria possível viver trabalhando com Arte, após o término da faculdade percebeu que as coisas não seriam tão ‘fáceis’ assim, optando por morar em Gioânia durante um ano, onde trabalhou como eletricista para uma empresa do ramo de alarmes para bancos e joalherias. Nos finais de semana coletava pedra-sabão para  fazer esculturas, assim, conseguiu realizar uma exposição, mas o campo era muito fechado à atuação de pessoas de fora e os concursos na época só permitiam a participação de pessoas estabelecidas após 5 anos na região. O que o fez retornar para o Nordeste; na época a seleção por concurso ainda não era uma exigência da Escola Agrotécnica de Petrolina, onde trabalhou por um ano como professor de educação artística. Após 2 anos desempregado, foi convidado para pintar alguns painéis na mesma escola; na época já estava aguardando o chamado da UNEB para ensinar no campus de Juazeiro, onde atua como professor a quase 18 anos.


Foto: Kall Britto
Embora apenas a mãe se recorde do tempo em que o pai trabalhava no comércio de gêneros alimentícios, lembra-se que na infância seu pai viajava muito devido ao trabalho como comerciante de jóias, passando vários meses longe da família , ao retornar, ele juntamente com a irmã, gostavam de ajudar o pai a organizar os mostruários. As correntes e demais peças que costuma usar, evidenciam essa familiaridade e carinho por tais objetos, embora o terço, chame a atenção para outro traço de sua personalidade: a espiritualidade.
Batizado na Igreja Católica, recorda-se que desde a infância na terra de padre Cícero, a religiosidade sempre esteve presente em sua vida, por volta dos seis anos de idade, ia  com a tia ao terreiro de Umbanda, tendo vivido a filosofia Hare Krishna durante parte de sua adolescência e se interessado posteriormente por várias linhas voltadas a questões espirituais como: o budismo, o candomblé, o kardecismo e  o esoterismo, das quais cultiva uma espiritualidade baseada em pensamentos ora sob uma vertente mais religiosa ora sobre idéias mais científicas como as de Nietzsche, Empédocles e Morin, fazendo lembrar a frase de Saint Exupéry de que “o essencial é invisível aos olhos”, talvez essa seja a base para a serenidade e bom senso evidenciados em sua personalidade.
Aos 51 anos, o físico revela o estilo saudável adotado desde a adolescência, ao deixar a carne vermelha e adotando a prática da yoga durante os anos que seguiu a filosofia Hare Krishna. Da época que viveu em Goiânia e morava próximo a uma unidade da  Associação Atlética do Banco do Brasil – AABB, mantendo desde então a prática da musculação. A bicicleta adotada como veículo na época da faculdade, quando precisava assistir aulas em diferentes locais da UFBA, contribui para a manutenção de um aparência saudável.  Os cabelos finos e uma calvície levemente insinuada, o fez optar pela ausência total dos mesmos. Todavia, para quem não conhece de perto, outro fato chama mais a atenção, os piercings, no supercílio, nariz, orelhas e mamilos, para quem viveu parte de sua adolescência em contato com uma religião indiana, cuja representação de muitas das divindades possuem adereços e elementos inconvencionais para a cultura ocidental, uma estética diferente traz consigo um olhar mais abrangente sobre a vida: “ Eu gosto da transgressão como forma das pessoas ampliarem sua percepção do mundo e da diversidade.” Tudo isso se manifesta no relacionamento e respeito que direciona para os outros, mas nem sempre reflete no olhar que muitas vezes lhe é direcionado.
Os conceitos prévios a que qualquer pessoa pode ser submetida, requisitaram-lhe a coragem para superá-los, respeitando a própria diferença, mesmo no local de trabalho, tendo  sido colocadas com objetividade até neutralizá-las. No âmbito da universidade, a circulação de idéias diversas como produto do pensamento humano, talvez favoreçam a quebra de barreiras, mas o respeito às diferenças, mesmo em um mundo globalizado, ainda requer mais atenção a esse notável detalhe.